No ano de 1854 a então Província de São Paulo ficou em polvorosa porquanto o governo havia sinalizado interesse em adquirir os conhecimentos de um africano sobre o combate de venenos pelo preço de 2.000$000, na época uma quantia considerável.
Esse africano era conhecido como Dr. Bulcão. Na exposição em homenagem à Consciência Negra, realizada em dezembro deste ano nas dependências da EMEF. Coronel Esmédio, o artista plástico Nilson Araújo produziu um painel com a história do “Curandeiro famoso”. O título advém de um artigo publicado pelo historiador Francisco Nardy Filho no ano de 1952 no jornal paulistano O Estado de S. Paulo.
O artigo discorre sobre o que já muito se falou: que um escravizado africano, pertencente ao Dr. Cândido José da Motta, realizava maravilhosas curas em pessoas desenganadas pelos médicos nas cidades de Itu, Porto Feliz e outras vizinhas. A fama dessas curas foi tamanha que a Província de São Paulo resolveu comprar os segredos desse curador.
Para tanto, estimaram uma quantia alta que satisfizesse o africano. Logo apareceram pessoas contrárias à proposta, dizendo ser um absurdo o governo provincial se dobrar a superstições e a prática de feitiços. Leve-se em consideração que naquela época o preconceito em relação a tudo o que fosse originário do continente africano era maior do que nos dias atuais. Se hoje tais conhecimentos ainda são vistos com reservas, o que se dirá naqueles tempos passados?
Segundo Nardy Filho, “não havia doença para a qual não tivesse ele seus prontos e eficazes remédios [...] Porém, sua especialidade, que lhe grangeava grande e notória fama, era a cura dos envenenamentos...” (O Estado de S. Paulo, 27 dez 1952). Parece ter sido esse o interesse maior das autoridades provinciais, seja pelo elevado número de acidentes com animais peçonhentos, seja pelo uso disseminado de venenos utilizados por quem tinha tal conhecimento.
Francisco Nardy Filho diz que o escravizado chamava-se Cândido. Nos jornais de época, aparece apenas com o apelido de Dr. Bulcão. Finalmente, por graça da tecnologia atual, um documento da Assembleia Provincial, hoje Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, elucidou o nome desse escravizado: Francisco.
Diz o documento manuscrito, um rascunho ao que parece, o seguinte:
Fica o Governo autorizado a despender a quantia de 2.000$000 para se obter a revelação dos segredos quanto aos antídotos de certos venenos dos quaes se sabe ser senhor o africano Francisco, escravo do cidadão Cândido José da Motta, do município de Porto Feliz, ua vez que feitas com toda circunspecção as necessárias indagações o governo fica convencido da veracidade dos boatos que circulão a respeito dos curativos feitos pelo dr (?) preto em pessoas presumidas serem envenenadas.
Possivelmente, a despeito da minuta acima, o africano não recebeu a quantia pretendida e seus segredos não foram revelados. Dez anos depois, outro documento pertencente ao acervo da Alesp, diz de outra tentativa de obtenção de remédio contra veneno de cobras:
As Commissões reunidas da Fazenda e Justiça, tendo presente a representação de José Guedes Pinto de Vasconcellos pedindo que um remédio da sua composição para curar os effeitos e moléstias produzidas pelo veneno das cobras, é de parecer que, não tendo esta casa os meios precisos para conhecer da efficacia do remédio mencionado, sejão a representação e o remédio remettidos ao Governo para que, mandando proceder os exames scientíficos necessários, conheça da efficacia e bondade do mesmo remédio, da conveniência de sua aquisição.. Sala das Comissões aos 8 de abril de 1864.
Por essas informações verifica-se que o governo possuía interesse na compra de antídotos contra venenos, especialmente os decorrentes de acidentes com cobras e serpentes. Infelizmente, apesar de sua fama como eficaz curandeiro, Francisco, chamado de Dr. Bulcão, não teve seus conhecimentos respeitados. Houve muita reação à tentativa do governo em comprar os seus “segredos”. Ou melhor, os seus conhecimentos. E, assim, passou mais de um século sem que nem mesmo seu nome verdadeiro fosse conhecido: Francisco.
Carlos Carvalho Cavalheiro é professor, mestre em educação, escritor, pesquisador e colaborador da TRIBUNA
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