Perdoa-me a intimidade, Fernanda Torres. A inclusão apenas do seu primeiro nome no título desta crônica não é sinal de pessoalidade, mas, antes, de um sentimento de gratidão e de congratulação pela conquista do Globo de Ouro como melhor atriz em filme de drama. Gratidão por elevar o nome do Brasil, por representar o nosso país (e vencer) numa premiação internacional; por nos dar orgulho de sermos seus conterrâneos.
O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, no qual Fernanda Torres atua, retrata a história real do deputado Rubens Paiva, preso e “desaparecido” durante a ditadura militar no Brasil. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Paiva, o filme ajuda a manter viva a memória de um tempo tenebroso de nossa história, uma mácula que perdura e que, insistentemente, alguns ainda tentam reviver. Como diz a frase atribuída a Bertold Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”.
Sim, sempre há quem prefira governos autoritários, ditatoriais, quem não consiga admitir que a liberdade possa ser usufruída pelo outro também. Mentalidade colonializada, há quem acredite que os governos foram criados para serem exercidos por quem enverga um dólmã ou farda militar.
A história de Rubens Paiva desnuda o tétrico período que foi o da ditadura militar no Brasil. Ao contrário do que o revisionismo histórico prega – e tenta convencer – nessa época não foram mortos apenas os “vagabundos” e os “guerrilheiros”. Rubens Paiva era um político que acreditava na democracia. Não pertencia a nenhum grupo guerrilheiro, não participou da luta armada no Brasil para a derrubada do regime militar.
Um dia, os agentes da repressão invadiram a sua casa, o levaram para depoimento e nunca mais ele foi visto. O reconhecimento de sua morte pelos agentes da repressão política da ditadura só ocorreu em 23 de fevereiro de 1996, após 25 anos de sua morte.
Durante a ditadura, documentos oficiais produziram versões diferentes sobre esse fato. Em 1986, conforme documento do Arquivo Nacional, os militares apresentaram a versão de que Rubens Paiva teria sido sequestrado por terroristas durante sua condução feita pelos militares para prestar depoimento. Diz parte dessa documentação que “a anunciada interceptação do veículo em que era conduzido o ex-parlamentar, o incêndio da viatura e posterior desaparecimento do sequestrado”, dão a entender que não houve “qualquer responsabilidade de militares no evento”. No entanto, a Lupa (Portal UOL) encontrou no mesmo Arquivo Nacional um documento de 1977, produzido pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), informando ao então presidente Geisel que Rubens Paiva havia falecido .
Mentiras, desinformações, desprezo pela vida. Em 2014, durante uma homenagem a Rubens Paiva na Câmara dos Deputados, de acordo com Chico Paiva, neto do homenageado, “Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que ‘Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!’. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto”.
Atualmente, os fanáticos da extrema-direita fazem boicote ao filme. Pseudopatriotas, não interessa a eles o fato de que o filme seja nacional e que tenha um reconhecimento de instituições internacionais. O deputado Mario Frias, do PL, por exemplo, se pronunciou sobre o filme Ainda Estou Aqui da seguinte maneira: “visa distrair o imaginário popular com os perigos de uma ditadura inexistente”. Depois, continuou dizendo que “essas premiações não representam absolutamente nada para a nação, que clama por liberdade, dignidade e prosperidade”. Ele que chegou a ser Secretário de Cultura do governo passado.
Interessante a colocação que esse deputado fez. A intenção do filme é distrair sobre os perigos de uma ditadura inexistente... Por que seria necessária essa distração? Ah, sim. É fato: desde o final do ano passado as ocorrências sobre a trama golpista estão sendo apuradas. Por isso, no imaginário do deputado, seja necessária a distração.
Mais uma vez, gratidão, Fernanda Torres por emprestar seu talento para dar visibilidade a temas tão atuais e que merecem um debate mais aprofundado e menos fanatizado. Gratidão também a Walter Salles, Selton Mello, Fernanda Montenegro, Marcelo Rubens Paiva e quem mais ajudou a contar essa história. Que esse filme possa ajudar na formação de uma consciência que afaste de nós aquela “incompetência da América católica que sempre precisará de ridículos tiranos”, como disse Caetano Veloso.
Carlos Carvalho Cavalheiro é professor, mestre em educação, escritor, pesquisador e colaborador da TRIBUNA
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